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conto de navegação-labirinto

em parceria com Moacir Caetano

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Em minha mente, a lembrança do que fiz martelava martelava martelava. Não a quebradeira. Foi apenas mais uma. Mas sim a lembrança imediatamente anterior.

Nunca fui chegado a arrependimentos ou culpa, mas dessa vez fui longe demais. Talvez o álcool, talvez o ódio. Talvez a soma de tudo, e mais alguma coisa que nem imagino o que seja. O fato é que aconteceu. E agora precisava lidar com as conseqüências. Ou não. Por isso a fuga.

Nove horas da manhã. Num dia normal, estaria nesse exato momento puxando o saco do filho da puta do seu patrão. Agora ex-patrão. O desgraçado adorava ser bajulado. Seu ego era tão grande poderia entupir um buraco negro. Com suas gravatas italianas e sapatos alemães. Ou era o contrário? Foda-se.

Num dia comum, estaria agora servindo de capacho pra um corno sabido e assumido. Ah, Suzana…

Apenas por ela havia suportado tanta mediocridade durante tantos anos. Apenas por ela se sujeitava às humilhações e broncas homéricas. A cada episódio repetido, eu olhava bem no olho do veado, sabendo que mais tarde enfiaria seu pau na boceta de sua mulher. E ela diria, como sempre: “Mete, meu benzinho, mete. Faz o que aquele chifrudo não dá conta!”

Ah, Suzana…

Era uma terça-feira, dia particularmente mergulhado na viscosidade do comum. Algumas planilhas alternando-se – graças à mágica combinação das teclas Alt e Tab – com as últimas descobertas do pornô. Intervalinhos de 10 a 15 minutos na copa sob o pretexto de tomar o café aguado – mas com borra no fundo – da Dona Isidora.

 Lá pelas 3 da tarde, a secretária bate no meu ombro:

– O Dr. César está te esperando na sala dele.

Quase todos os dias o corno me chama ao seu escritório. Quase todos os dias eu sinto meu estômago despencar no vazio, imaginando que ele finalmente havia notado o perfume exagerado com que a mulher dele impregna minhas camisas, uma nódoa da minha porra que esquecemos de limpar do criado mudo, eu dublando vi-a-do sem som quando ele vira as costas e outras mil possibilidades de desastre zunem em meu cérebro em menos de um segundo. Quase todos os dias eu me sento na sala onde ele me espera com um sorriso sádico, apenas para constatar que além de corno o filho da puta é cego.

Sempre alguma bronca por uma irrelevância, qualquer coisa pra me atormentar a vida. Pode não saber das coisas, mas que o desgraçado tem um faro, isso tem. Abro a porta de vidro fumê e dou de cara com o sujeito de pé. “Senta, Moura!”, ele diz.

Senti o comum daquela terça lentamente esvaziar a sala.

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cruzes

Estão tentando riscar a morte das nossas vidas. Já não existe os olhos nos olhos (ou no vazio) que brilham por dentro do capuz. Nossos bichos mortos vem esterilizados em bandejas de isopor nos supermercados. E compre saquinhos de AB à parte se quiser uma galinha a cabidela. Nossos parentes ignoram a chegada da morte atados em máquinas que respiram, mastigam, apitam por eles e quando a hora chegar serão encontrados com uma miríade de fios nos pulsos e ninguém para segurar sua mão. E eles morrem e não seremos nós a fechar seus olhos e só nos dignaremos a vê-los de novo depois de vestidos na sua melhor roupa de festa, penteados, perfumados e corados da maquiagem lindamente aplicada para nos fazer acreditar que estão apenas dormindo. Dormindo! Como se tivessem esquecido que iam a alguma festa e dormissem naquela posição estúpida e desconfortável em seu caixotinho de madeira rodeado por velas e flores pretensamente cerimoniais (mas preste atenção, menino, preste muita atenção) mas que estão lá simplesmente para esconder a verdade que é o cheiro do morto, a verdade que é que ele está frio e que fede.

Posto que restam poucos a transitar na necrópole minguante e paralela, médicos, assassinos, funenários, açougueiros e matadouros e vez ou outra alguma criança que com crueldade inocente observa o peixinho que se debate ou esmaga uma aranha entre o indicador e o dedão. E que podem seguir em frente com olhos grandes e sem piscar e sem jamais, sem jamais desviar o olhar.