Zózimo (ou: o epicentro do azar)

Rezam as leis da probabilística que, mesmo que a chance de ganhar na loto seja 1 em 7 bilhões, eventualmente algum bastardo sortudo colocará suas novas-ricas mãos naquelas barras de ouro que valem mais do que dinheiro.

Isso não é algo que o universo possa deixar impune, por questões de equilíbrio. Para cada surto de sorte galopante, deve haver uma maré suja de azar equivalente, de proporções atlânticas.

De forma que, a cada geração, surge um Zózimo. Para você, ente pouco escolado nas hierarquias que fazem funcionar a corporação cosmonáutica do universo, explico: o Zózimo é o bode expiatório do azar, a criatura para onde se dirigem de forma simples, rápida e automática os grandes revezes gerados pelas explosões de sorte.

Pois bem. Os Zózimos, como você pode imaginar, não duram muito, mas é possível reconhecê-los. Uma das características básicas do ser humano eleito para a posição é o nome: geralmente algo como Urraca, Antilóquio ou, o clássico, Zózimo.

O que você considera azar, para um deles, seria o dia mais feliz de toda sua vida. Quer dizer, a torrada de um zózimo não cai com a manteiga para baixo, ele come normalmente e depois morre de forma lenta e cruel por um fungo desconhecido que estava no pão.

Ele encontrará uma moeda no chão, apenas para ser atacado por uma capivara recém-saída de um bueiro. Ele ganhará uma aula grátis de surfe, durante o período de procriação do grande tubarão branco. Ele procurará paz em um convento apenas para acabar assaltado por uma quadrilha de freiras.

Quais as chances disso acontecer? Oras, pergunte ao babaca que ganhou na loteria.

Contra a parede

Na quinta-série, diriam que é coisa de maricas. No colegial, que é coisa de boiola. No trabalho, que é coisa de viado. E imagino que, em algum asilo, algum velhinho vá dizer que é coisa de rabicho.

 

Pelo jeito,  botar uma rodela de laranja na borda de um drinque é sinônimo de beijar meninos. Tudo bem, eu gosto dos dois. O barman tatuado, com chapéuzinho de marinheiro e blusa listrada, preenche o copo com gelo e uma mistura de aperol, água com gás e prosecco. Coisa de viado. O outro copo, ele preenche com morango, açúcar, saquê. Coisa de menininha.

 

Eu entrego o drink pra Dani. Aqui, a estratégia de conseguir o drinque mais rápido com a ajuda do decote não funciona. Aqui é o reino do biceps. Isso você percebe só de olhar para a pista. Gente tão bem vestida, tão antenada, ouvindo música tão boa. Não é coisa de HT.

 

Por entre os corpos, a gente vai abrindo caminho, no jogo de equilíbrio de não derramar o Spritz. Procurando o Lucas, a Sarah, a Meg e o Rubens entre tantas pessoas balançando e  trocando de cor.

 

Ali, aos pés da plataforma onde os mais bebâdos já faziam pole dancing, nosso grupinho se mexia de olhos fechados, os drinks iluminando o corpo por dentro. Tirando o Lucas, do escritório. Durinho, encostado na parede, como se a qualquer momento alguma mão gatuna fosse se espalmar na bunda dele. É assim que se reconhece um HT na balada gay. Os olhos sempre alertas,segurando náufrago a mão da namorada.  A bunda contra a parede.

 

A pior parte de ser um cara gay é a autoestima do homem hétero. O que mais explica essa cisma de que todo viado vai dar em cima dele? Até aqui, com um salão inteiro de caras gatos, caras legais, e , mais importante, caras que gostam de outros caras para eu escolher, o pobre Lucas sua frio toda vez que eu chego perto.

 

***

Na varanda que faz as vezes de fumódromo desde a proibição do cigarro, uma mãozinha encosta no meu braço.

 

– Me dá um cigarro?

 

Sarah, namorada do Lucas, abriga a chama com a mão, antes de tragar fundo, quase como um suspiro. A maquiagem em uma trilha negra do olho ao queixo.

 

– Tudo bem aí?

– Preciso ir embora. Mas precisava mais de um cigarro.

– …

– Terminamos. Eu e o Lucas.Não dá mais. É uma cena  toda vez. Sabe qual foi a de hoje?

Ele acha que eu estava dando em cima de um cara. Aquele que tava pirando quando tocou Rihanna. Aquele com a blusa de gola V enorme. Fala sério, o que aquele cara queria eu nem tenho. É uma balada gay, porra.

– Homem é tudo tonto. Vai por mim, Sarinha. Amanhã ele vai aparecer na sua casa de joelhos, dizendo que você é uma rainha. Você é.

– Sei lá. Não tenho mais energia pra tudo isso. Tô tão cansada.

– …

– Rique?

– Oi.

– Obrigada pelo cigarro.

 

***

Já são grandes os espaços na pista. A parte da festa em que só restam os mais bêbados e os mais animados. No meu caso, acabo de me despedir do menino lindo que eu conheci, ainda sentindo o peso das suas mãos na minha nuca. Um arquiteto de cabelo raspado, com covinhas que cravavam no seu rosto, quando sorria. Ligo para ele na segunda? Ou é melhor esperar até quinta, fazer um charme?

 

E aí, passando os olhos pela pista, eu vejo. O Lucas ainda está aqui. Sozinho. Ninguém ao redor. A bunda ainda colada à parede. E a cara de quem não está aqui.

 

– Lucas?

 

Não me ouviu. Continuou a balançar sem ritmo, como se não ouvisse música,como se estivesse de pé no meio da tempestade.

 

– Lucas. Você tá bebado. A festa acabou. Vai pra casa.

– Não dá. A Sarah. Levou meu carro… A chave.  A minha chave do apê.

– Deixa de ser bobo. Eu te levo. Eu te levo, tá?

 

O que fazer, quando no taxi, o homem mais hétero que você conhece chora aos soluços? Eu olhei pela janela, para os faróis dos carros que voltavam para suas garagens antes do amanhecer. Mil  luzes escorrendo lentas pelas veias abertas da cidade.

 

Subimos. Ele escorado no meu ombro. O medo de uma fungada, de ter um homem com os braços ao redor de si, afogado por uísques e cerveja.

 

O lençol infla antes de descer aberto sobre o sofá. Duas almofadas na mesma fronha. Está pronto o travesseiro.

 

– Rique? … Cê é foda.

– … Deixa disso. Ei, você dorme com coberta?

 

A resposta foi um esguicho de vômito no carpete. E outro. Na lista de vítimas do ataque de ácido, sua camisa, suas calças, seus sapatos, sua barba, suas mãos. São noites como essa que separam colegas de trabalho e amigos, aqueles de verdade. Você nunca é amigo de verdade de alguém, até ter limpado seu vômito.

 

O desafio de abrir os botões da camisa sem tocar no que deviam ser os restos mortais de um hot dog. De convencer o Lucas a tirar as calças, a entrar no chuveiro. De ver a água escorrendo sem que ele se mexa. De entrar no boxe de roupa e tudo para passar sabão na barba, tirar os pedacinhos de salsicha do cabelo. De torcer para ele não lembrar amanhã, aterrorizado, que o viado do escritório viu ele pelado.

 

Até que ele se mexe. Me puxa para baixo dágua.

 

Deixo.

 

O gosto de uísque.

 

O cheiro de planta do meu xampu.

 

Um joelho molhado.


E o dark room do seu corpo.

Andaime

Tão apertada que parecia pintada na pele. A calça. Tão apertada que eu teria pena da circulação da moça. Se não estivesse ocupado, acompanhando o movimento ritmado dos bolsos, um pra cima, outro pra baixo, cada vez menores até ela dobrar a esquina. E nem ouviu – ou fingiu que – quando o Salomão atirou do andar de cima:
– Deus é justo, mas tua calça é mais, hem!
E era. Um brilho nesse mar de tijolo em cima de tijolo em cima de tijolo em cima de tijolo. Nossa televisão de cachorro.Sabe, televisão de cachorro? Aquele trambolho na padaria, os frangos no espeto assando, girando. Um balé de frango. O que um cachorro pode fazer além sentar, abanar o rabo e olhar, olhar o frango dançando por que é a coisa mais bonita, olhar a pele escurecendo, caramelando, mesmo sabendo que tem um vidro e esse vidro é a muralha da china, é labirinto de laser, é uma porta de aço de 27 camadas? Mas tem a cabeça da gente, e lá é um mundo onde o vidro abre, e o dono da padaria não tem balde d’água nem vassoura e lá a gente termina com a língua pra fora e o focinho brilhando de gordura.
Meio-dia, quase. A calça crocante de cimento e argamassa. Vai começar a segunda leva, todo os tipos de menina, saindo pro almoço.O Salomão desce, eu limpo o suor das mãos no jeans. Meio-dia, quase. O tradicional gole d’água, para tirar o pó da garganta antes de atirar gracejos como quem atira confeti, o hobby da categoria, benefício que tinha mesmo é que ser garantido em carteira assinada para todo mundo que passa o dia botando a cidade de pé.
Ali na curva, aparecem as primeiras. Uma morena alta, de blusa estampada e argolas imensas nas orelhas. Uma mulata de batom vermelho e shortinho. Mãe do céu. Está dada a largada do Torneio Anual de Louva-ancas. Do dia. Eu começo.
– Minha Nossa Senhora da Bunda!
Mais dois minutos, vem a próxima. Loira, daquelas com as raizes pretas. E um bocão. Deve saber chupar, e bem. Mas calma. Nem é a minha vez. O oponente dá uma engasgadinha mas tira uma da manga no último segundo:
– Lôrinha! O que eu faria contigo dava um filme.Pornô!
Outra morena, mais velha, de vestido com estampa militar. Um desafio.
– Tá camuflada, minha linda? Que roupa boa pra eu te levar pro matinho…
Sacanagem sob medida ganha ponto. Fazer ela olhar também. A temporada promete e não é nem meio-dia e dez.Vem vindo uma bem branquinha, com um cara do lado.Salomão crava a clássica.
– Tá tudo bem, meu anjo, eu não sou ciumento…
Passam minutos, e ninguém. Mais um gole d’água, pra ocupar o silêncio de decidir se terminou o torneio.E vira a esquina uma moça bem magrela, de moletom e rosto cavado, com aqueles sapatos de plástico cascudos feios como o diabo depois de ir no cabelereiro do inferno (que é uma bosta). A ereção ao contrário. A gravidade vezes dez. O anticoncepcional genético.
– Vem pra cá que eu te chupo toda!
Ela apressou o passo. Ela não olhou pra trás. Mas dava pra ver nos pelinhos da nuca que ela gostou.
Sabe como é. Se a gente não diz nada, elas se ofendem.

sweet

A realidade deveria ter mais de brigadeiro. De algo que se possa moldar ainda morno com as próprias mãos, redondo e doce e possível.

Viver deveria ter um pouco mais de brigadeiro. De algo em que, querendo, basta enfiar a colher.

 

A título de esclarecimento.

Os pinguins, nos informa o discovery channel, são alguns daqueles raros animais que quando escolhem um parceiro é porque ficarão juntos por toda vida, na alegria ou na tristeza, no peixe farto ou na morte violenta patrocinada por baleias orcas.

Os pinguins, nos informa a revista Vogue, estão e sempre estarão in, graças à combinação de preto e branco, um clássico chic et contemporâneo para todas as idades.

E é por isso que obrigamos os homens  a contrair a gonorr o santíssimo matrimônio fantasiados de pinguim.

(Nâo?)